O amor é azulzinho

@jogueiareguafora

Ela chegou em 23 de março de 2009. Uma segunda-feira. Lembro como se fosse hoje. Eu tinha 16 anos à época. Era meu último ano de escola e, por conta do famigerado vestibular, eu tinha alguns dias de aula em período integral. Era o caso da segunda. Mas naquela segunda, especialmente, faltei às aulas da parte da manhã, com o consentimento de minha mãe. Afinal de contas, não é todo dia que a gente vira tia. Segui a caravana da minha família rumo à maternidade, porque a esposa do meu irmão estava para dar à luz.
Pois bem. Nasceu minha sobrinha. Quando a avistei no berçário, a primeira coisa que reparei foi na manchinha avermelhada na testa, que eu também carregava na infância, como marca de nascença. Quando ela foi para o quarto, depois de passar pelos braços dos pais, veio para o meu colo. Aquela coisinha pequena que, mais tarde, me chamaria de "Tia Dinda", porque me coube também o posto de madrinha. Um pouco pelo meu título duplo, mas não só por ele, fui uma tia participativa desde o comecinho. Canções de ninar, fraldas, mamadeiras, golfadas, banhos... Passamos por tudo. A este tudo pelo qual passamos, foi acrescida uma barra para muito além das tarefas cotidianas. Teve a perda da minha mãe. Um baque daqueles. Hoje, olhando para o luto da minha família como a um quadro, percebo que naquele momento estivemos todos - quatro adultos e uma adolescente - nos braços de um bebê de seis meses. Nayara salvou todo mundo. Gratidão por isso.
Tempo passando - porque ele é dono de si e não para -, nossa salvadora foi crescendo. Meio "bruta" desde novinha, tinha uma comunicação diferenciada. A fala não fluiu logo. "Quando entrar na escola, desenvolve". E aí veio a escola e com ela a dificuldade de socialização. Minha irmã, fonoaudióloga, foi a primeira a acender o alerta de que podia ter algo ali. E tinha. Autismo, o nome. Mais precisamente Síndrome de Aspeger, que é um dos Transtornos do Espectro Autista (TEA). Uma condição neurobiológica que afeta cognição, comunicação e a parte sensorial do indivíduo. Não é adquirida, nasce-se com ela. Não é contagiosa e não tem cura, porque não é uma doença. No caso de Nayara, foi um detalhe que nada pôde contra o amor gigante de todos nós por ela.
Nem sempre é fácil. Existem os incômodos que ela não consegue expressar e então, externa como pode: grita, faz movimentos repetitivos, chora, repete frases sem nexo... E canta. Como (en)canta! Isso também quando está feliz. Compõe suas próprias canções e armazena naquela cuca legal maravilhosa, que parece possuir um HD potentíssimo. Que memória! Não escapa nada. E espirituosa que é? Quase diariamente a gente recebe áudio do meu irmão falando "vocês não sabem o que Nayara aprontou hoje!". Decidida, cheia de personalidade e sincerona. O porto seguro onde eu, sempre tão cobrando tanto de mim mesma, me sinto amada incondicionalmente, acima dos meus sucessos e fracassos. É no seu abraço que me sinto em paz. Ela, tão parecida comigo fisicamente e em alguns trejeitos, e tão melhor que eu em tudo.
O diagnóstico da minha sobrinha desconstruiu uma gama de pré-conceitos que eu tinha sobre o autismo. Principalmente essa coisa de que autista vive exclusivamente no seu mundo particular, sem consciência do que existe aqui fora. Ver e viver o mundo de uma maneira diferente não exclui ninguém dele. Não são raras a vezes, por exemplo, em que ela sai com uns comentários que parecem torná-la a pessoa mais sensata da família naquele momento. É tanto o que ela nos ensina diariamente, que uma vida inteira não é o suficiente para retribuir. Como diz numa música que ouvi uma vez, meu desejo é salvar o mundo para que ele mereça a presença de Nayara. Porque eu, que possivelmente nem mereço, sou salva todos os dias pelo presente que é vê-la crescer.
Um pedacinho de gente me fez descobrir a cor do amor. E ele é azulzinho.

♫ Natércia Dantas - Flor Azul

✨ 2 de Abril é o Dia Mundial de Conscientização do Autismo

➥ Azul é a cor da campanha de conscientização do autismo

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