Essa Mulher

Oi, você que faz tanto estrago. Você que não tem medo, não mais. Ou melhor, você que tem muitos medos, mas venceu todos eles. Você que achou seu lugar no mundo e o agarrou com unhas e dentes, sem precisar arranhar nem morder ninguém inocente no caminho. Você que encontrou - e reconheceu! - seu grande amor. E não ficou paralisada quando soube que era ele. Você que agora vive a sua "sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida" (Salve Cazuza!). Você que não se esconde mais. Que não tem mais medo de ir. Só medo de ficar. Porque sabe que eu fiquei demais. Sabe que quem veio antes de mim também ficou demais. E então você, refeita, melhor, evoluída... Você vai.
Aqui de onde estou, me vejo melhor do que fui, mas não me sinto ainda você. Embora esteja trabalhando lentamente para isso. Eu não vejo a hora de não mais temer, não mais trancar essa imensidão que existe dentro de mim. Dizem que eu deixo tudo preso no peito. Eu acumulo demais: dores, amores, prazeres, quereres, sonhos, mágoas, incômodos, tristezas, medos... Tudo se apertandinho bagunçadamente no baú de mim. No baú que sou eu. Não vejo a hora de escrever o que quero, cantar o que quero, viver o que quero, ser o que quero. Eu, quando for você, estarei em paz conosco.
Hoje mesmo tive um lampejo seu: fui acometida por coragens. Talvez eu esteja chegando aí por perto, ou talvez tenha dado só um passo. Um dos meus potinhos de silêncios empilhados hoje transbordou. E fez barulho. Eu. Eu. Eu. Eu. Eu. Pensei em mim. Não abaixei a cabeça, não. Assim, que nem você faz sempre. Você pensa na gente. Pensa em você, mas pensa em mim e naquela que a gente foi. Lembra dos rios que passaram debaixo das nossas pontes e dos fantasmas que assombraram os nossos caminhos até que pudéssemos ser você. E aí você vai lá e dá um monte de orgulho pra gente, porque se tem uma coisa que a gente veio fazer no mundo foi ser feliz. E, em nosso nome, você não abre mão disso. Hoje, orgulhosa, eu vi traços seus em mim.
Eu ainda junto minhas tralhas, é verdade. Uns cacarecos imprestáveis, umas coisas pontiagudas enferrujadas, que às vezes me ferem por dentro. Ainda guardo também minha beleza. Meu amor continua aqui, quentinho, limpinho, doce, perfumado... Não deixo ninguém tocar, nem eu mesma. Tudo por precaução. Lembra no que deu quando aquela menina doida e ingênua que a gente foi quis colocá-lo para fora? Tenho medo de sujarem, rejeitarem, acusarem ou, como antes, rirem do nosso amor. Medo de apontarem o dedo para a cara dele de novo e fazerem piada. Tenho medo também de encostar nele, ele me tomar toda e aí danou-se. O que é que eu faço com esse amor demais? Você sabe. Você encontrou aquele a quem dar essa coisa tão minuciosamente cultivada em nós. Não deve ter sido fácil, talvez tenha até doído. Mas você sabe que amor não foi feito para ficar em fundo de baú. Sabe tanto, e acredita nisso tão mais que eu.
Tenho por você admiração e vontade imensa de te ser. Ainda não sou. Mas estou a caminho. Logo mais, ou logo menos, eu chego aí. Chego aí onde quero, para ser você. E viver de amor por mim, para amar melhor o amor e o mundo.
Oi, essa mulher que não sou. Mas que serei, em breve. Me espera. Eu chego já.

♫ Essa Mulher - Elis Regina


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