Eles amaram de qualquer maneira

Isabel vivia com a cabeça na lua e o coração quase sempre a um passo de pular do peito. Intensidade demais dentro de si, que nunca conseguiu externar por completo. Se apaixonou um punhado de vezes. Na maioria delas, guardou tudo para si. Houve apenas uma vez, uma única vez, em que gritou ao mundo. O romance não acabou bem. Isabel se fechou. Não chegou a jogar a chave fora, mas guardou-a tão bem guardada, que nem ela lembrava ao certo onde.
Vez em quando surgiam umas ternuras, uns quase romances, uns flertes divertidos que davam frio na barriga, rubor no rosto e faziam o tempo passar. Mas o seu amor, amor mesmo... Não o dava a ninguém. Alguns bem o quiseram, mas Isabel teve de negar. Faltava sempre alguma coisa: uma faísca específica, uma conexão sobrenatural, um estar à vontade mesmo com todas aquelas borboletas no estômago. Faltava ser paz e frisson ao mesmo tempo. Essa coisa doida e paradoxal - quando ela já acreditava ser invencionice sua, mera desculpa interior para nunca se entregar totalmente -, Isabel encontrou quando conheceu Pio.
Pio, que só de existir já era um galanteio encarnado. Pio, por quem suspiravam 11 de cada dez mulheres que lhe cruzavam o caminho. Pio, que desmanchou Isabel inteira num olhar. Pio, que a bagunçou toda sem nenhum esforço, sem sequer querer. Apenas porque parece ter nascido para isso, angariar corações com um único desgraçado sorriso.
"Primeiro era vertigem, como em qualquer paixão": um inferno. E ela adorava. Todos os dias se colocava sentada, inocentemente, numa praça localizada bem no meio do caminho de Pio. Só de vê-lo atravessar a rua, ela corava e de repente tinha o mês de junho dentro de si: era fogueira e fogos para todo lado. Um frenesi. E ela mal conseguia lhe dizer "bom dia". Uma menina tonta atraída por um homem. Um homem, pela primeira vez. Não um menino, como de todas as outras. Mas como esse homem era Pio... "Bobagem, não vai rolar". E ainda assim ela seguia sentando na praça. "Limpar a vista, que mal tem?"
Só que a gente nunca sabe o quão irônica pode ser a vida. Mais alguns anos à frente, temos Pio e Isabel. Carne e unha. Corda e caneca. Apesar de todas as piadinhas das amigas dela, que insistiam em apontá-los como par, ela era irredutível:
- Par, não. Dupla. Somos amigos. Praticamente irmãos.
Exagerava. Não eram tão irmãos assim. Ela continuava apaixonada por ele. Agora, ainda mais. Tinha nele paz e frisson, do jeitinho que havia sonhado. Seus olhos se acendiam durante suas longas conversas. Seu peito se alargava. Ela até respirava melhor. E sorria. E sentia que poderiam falar sobre qualquer coisa. Eram horas e horas e horas. Era amor das duas partes. Mas da parte dele, o amor era fraternal. Era nisso que ela queria crer. Conseguiu. E conseguiu tanto que seu amor foi vencido pelo cansaço:
- Tudo bem, Isabel - dizia o pobre sentimento dentro do peito - Amigos, então. Irmãos.
De tanto se maquiar de fraternidade para que Pio continuasse por perto, a paixão de Isabel passou a crer piamente que era uma amizade. Estava tudo bem. Agora, a faísca que era de um vermelho alanrajado vivo, tinha uns tons meio azuis, meio verdes. Meio frios, mas ainda ternos. Dava para ser feliz, sem a agonia de ser apaixonada pelo melhor amigo. Estava livre daquela praga do "tão perto e tão longe" que quase não teve fim. Mas teve. Teve e agora Isabel estava toda bonita e segura por dentro e por fora, toda pronta para amar, toda mulher para se entregar... E se apaixonou de novo. Theo. Um partidão. Dava para ser feliz e ainda sobrava espaço para ser mais feliz do que se pudesse esperar.
Até que Pio resolveu dizer a palavra que nunca foi dita: a natureza de seu amor por Isabel.
Agora podia dizer, já que não era mais tempo e nem faria mais sentido. Como ela, ele também teve suas brigas internas para saber como lidar com a conexão entre os dois. No fundo, no fundo, eles sempre souberam e fingiram que não. Seguiram assim, ambos apaixonados, mentindo para si que não eram correspondidos da mesma forma, mesmo sabendo que eram. Tinham certeza de que um romance terminaria por separá-los. Estavam certos. Por maiores que fossem a intimidade, a cumplicidade e o sentimento... Seus estilos de vida, ao menos nesta vida, eram muito diferentes. Suas formas de encarar e lidar com relacionamentos, principalmente. Não perdurariam como casal, então encontraram na amizade um porto seguro onde poderiam permanecer juntos.
Sabe-se lá dos mistérios que envolvem as idas e vindas das almas para este mundo. Para duas pessoas tão diferentes se amarem tanto, a explicação tinha de estar para além do corpo e da matéria. Se queriam tanto perto um do outro, que escolheram não se querer. Venceram os desejos e confusões. Partiram por outros assuntos: Isabel seguiu com Theo. Pio seguiu com todas as outras. São felizes e amigos com uma convicção lascada. "Eles se amam de qualquer maneira. Eles se amam, e é pra vida inteira."
E eis que esta não é uma história de amor qualquer. É a história de um amor que, de tanto amar, largou a mão da paixão e optou por ser outra coisa... Só para nunca ter que deixar de ser.

♫ Paula e Bebeto - Milton Nascimento

Comentários

Postagens mais visitadas