A cicatriz risonha e corrosiva

@jogueiareguafora 

As marcas do amor passado estavam quase a ponto de sumir e ela já não sabia se haveria um amor próximo. Queria. Desejava intensamente. Mas se tinha uma coisa que ela sabia na vida, essa coisa era que desejar não é garantia de ter. Até aqui, ela quis muito pouco. Quase não pediu. O amor que solicitou sempre foi maleável. Estava disposta a aceitar o que pudessem lhe dar os seus eleitos. Foram poucos os escolhidos. E ela, que quis pouco, de tão poucos, lhe teve tanto negado. Mas agora, havia ao menos lembranças reais, para além dos sonhos costumeiros, frutos de sua imaginação fértil. Agora, enfim, tinha provado pitadas generosas de realidade.
Mas as marcas do último amor já estavam clareando e ela não sabia se iria renová-las. O tic-tac rouco do relógio lembrava que o tempo passava apressado. O fim do ano já vinha aí e ela receava que não houvesse um próximo amor, embora quisesse tanto. Certas coisas precisam de dois quereres para acontecer, não importa o quanto o do lado de cá seja grande e forte. Das próprias carências e querências ela sabia bem. O lado de lá que era uma incógnita. E ela nunca foi boa de conta. Não a julgo. Também não sou.
Essa coisa que a marca, e a assombra, e a enrubesce, e a faz sorrir... Ela não sabe explicar. Pudera. Quem saberia? Essa coisa que chega assim, sem aviso prévio e toma quem quer que seja. Não há imunidade possível. Ela foi tomada. As pessoas já começaram a notar, sem que precise ela dizer uma palavra a respeito. Está na cara. Nos olhos que escapam em meio a um assunto importante, mirando a parede ou o teto, mas vendo sabe Deus o que. Está no sorriso que se mostra sem motivo aparente. Está nela inteira. As marcas do último amor estão quase indo embora, mas já é tarde demais. Ela foi tomada.
E então, antes das marcas se irem de vez, ela marca a própria mente. Tatua as memórias pelo seu lado de dentro. Se joga nos braços da gratidão: um lugar quente e seguro para se viver. Um lugar onde não importa se as marcas do amor passado se mantinham ou iam embora. Existiram. Teceram lembranças. As marcas do amor passado já estavam se apagando, mas ela não se importava. Agradecia. Porque só a realidade marca.

♫ Elis Regina - Tatuagem

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