As duas faces de Eva

@jogueiareguafora

Dizem que o meio em que estamos inseridos desde o nascimento nos constrói como somos individualmente, nossa personalidade. Pois bem. A primeira observação que tenho a fazer, tendo em vista o núcleo familiar no qual fui criada, é que em minha casa o sistema sempre foi matriarcal. Qualquer pessoa da minha família pode atestar com muita facilidade isso que falo. Minha mãe ocupava desde a cabeceira da mesa de jantar, à última palavra em qualquer que fosse a decisão a ser tomada e que dissesse respeito aos seres que viviam aninhados sob suas asas. A Rainha-Mãe. Uma mulher cheia de fragilidades bem particulares mas que, paradoxalmente, era forte como rocha. Sabe lá os dilemas e medos que ela guardava para si e quanto cada um deles lhe custava... Mas para mim, na minha visão de cria absolutamente devotada pela genetriz, ela era uma fortaleza inabalável. Ou quase. Mesmo que caísse chorando - o que não era raro, diga-se de passagem, dada a sensibilidade ocular pela qual também fui agraciada  geneticamente -, ela caía de pé todas as vezes. Fui gerada, parida e criada até os 17 pela Mulher Maravilha. Aliás, posso dizer que ainda hoje ela continua me criando. Sua imagem é um oráculo que me guia, me lembra de onde vim, de quem sou, de quem ainda pretendo ser e onde pretendo chegar.
Dona Verônica foi criada, pelo que presumo a partir das histórias que me foram contadas, na rédea curta. A imagem que faço de minha avó-xará (que não cheguei a conhecer) é, para dizer o mínimo, de uma mulher de temperamento um tanto difícil, dona de uma cabeça antiquada. A minha própria mãe era antiquada em muitas de suas ideias. A velha história do meio que constrói a nossa personalidade. Dona Verônica tinha os predicados necessários às boas esposas de sua época: cozinhava, costurava, bordava e tudo mais. Mas no fundo, acho que era porque ela queria. Sei bem de todas as suas tristezas e sofrimentos, que lhe custaram a vida, no fim das contas. Mas não consigo deixar de pensar que minha mãe foi uma mulher que lutou para ser o que queria ser. Talvez não tenha conseguido em coisas que não dependiam dela. Mas no que dependia, ela deu sempre o seu melhor.
Minha mãe não fazia a menor ideia do quanto era empoderada. Mesmo porque até ela ter partido, essa palavra não era tão usada e discutida como hoje. Minha mãe foi o que quis ser. Professora, a contra gosto da minha avó. E mãe. O maior sonho da vida da minha mãe... Era ser mãe. Assim ela dizia e eu o acredito com a maior das tranquilidades, porque pude provar do seu dom, que ela exercia com verdadeira maestria. Na juventude, chegou a ser noviça. Mandou a carreira de freira às cucuias, usando uma redação escrita numa prova do convento para defender o direito sobre o próprio ventre, que ela queria ter ocupado por novos seres que sonhava trazer ao mundo. Afortunadamente, muitos anos mais tarde, tornei-me uma das criaturas que habitaram aquele útero alforriado. Ela agarrou-se à própria devoção pela Virgem Maria para argumentar em favor do sonho da maternidade. "Se a mais sublime e pura das mulheres foi mãe, por que não eu?", indagou ao final do texto. O resultado? A novicinha pendurou o hábito e foi mandada de volta para casa pela Madre Superiora. Eu e meus irmãos vivemos para perpetuar a história. Se este não foi um ato de puro e completo empoderamento, não sei mais o que é.
Este não é um texto sobre a maternidade em si, e sim sobre o insuspeito poder revolucionário contido num ventre que, por oito meses - já que nasci prematura -, foi minha casa. Sorte a minha. É olhando para a história da minha mãe que vislumbro o peso das dores e delícias de ser mulher num mundo que tem o mau costume histórico de nos olhar com desdém. E de nos pisar sempre que pode. Apesar da criação tradicional envolta de preceitos antigos, minha mãe foi chefe da própria casa, líder dos próprios filhos e provedora das próprias finanças, estivesse o marido presente ou não. Um verdadeiro mulherão da porra, com todo respeito, uma vez que ela condenaria o título pelo palavrão. Que sorte a minha ser contemplada a carregar o fardo de ser mulher, à sombra da história de minha mãe e tendo por parâmetro a força dela. Minha mãe foi a melhor e mais empoderada mulher que cruzou o meu caminho. É tendo o pensamento fixo nela que sigo aprendendo todos os dias que ser mulher é já nascer em guerra, carregando nos ombros flores e o peso do mundo. Ser mulher requer força. Ser mulher já é ser forte.

♫ Rita Lee - Cor de Rosa Choque

8 de Março é o Dia Internacional da Mulher

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