Manda seu corpo deslembrar

@jogueiareguafora
- Tira isso de mim! - gritava a Deus, num tom desesperado e inundado de lágrimas. E continuava.
- Eu não quero isso! É coisa sua! Leva isso embora daqui!
Estava falando do quase-amor que sentia. A dor da rejeição faz esse tipo de coisas com a gente. A dor do descarte. A frustração por ter sido desejada com uma vontade que tinha curto prazo de validade. Tudo isso misturado ao coração partido, onde algum sentimento já dava sinais de vida, ainda antes do abandono. Sonhos, expectativas e ela própria... Ao chão. Sentia que tudo doía. A alma e o corpo também. E quando as sensações eram muitas e muito intensas, chorava escondida, de soluçar, enquanto apertava as unhas contra as palmas das mãos, na esperança de mascarar uma dor com outra. Sabia o quanto era infantil, carente e desproporcional a sua reação. Mas era aquela bagunça que lhe ia por dentro. E como machucava! Sentia vergonha de seu estado e calava, mentia, mudava de assunto, quando lhe perguntavam a respeito.
Tinha dificuldades de lidar com o próprio corpo. Não conseguia se olhar e ver uma mulher. Via apenas um amontoado de coisas das quais ele provou e não quis mais. A razão gritava por dentro que aquele pensamento era errado e autodestrutivo. E o que poderia ter a razão, senão a si própria? E ela sabia disso. Mas não podia evitar. E se doía mais porque a sã consciência estava perdendo o jogo para o desvario do coração. Um coração que amava demais e se amava de menos. Um problema. Era preciso se amar por dentro para poder externar algum amor, qualquer que fosse. Mas ela pulava etapas, apressada que era.
O corpo. Como se já não bastasse estar de alma mergulhada num mar tortuoso de emoções confusas e doloridas, ainda havia o corpo. Seu corpo e as vontades próprias que possuía. Vontades que foram acordadas por quem não ficou para satisfazê-las. Ela não estava só triste. Estava um pouco em agonia. A simples imaginação hipotética de ser tocada por outro, que não aquele que a havia deixado, já lhe doía. É por essas e outras que é cruel, para dizer o mínimo, trazer a lenha e depois dar as costas a uma mulher em chamas. Coisa que não se faz.
E assim os dias passavam lentos e apressados. Estava vivendo para ver o tempo passar, rumo a não se sabe o que. As lembranças de como ele foi embora plantavam mil e uma interrogações na cabeça dela. Todas descabidas. Buscava, como sempre, como em tudo na vida, sua falha, seu erro, sua culpa. E buscava em vão. Não existiam. Não era justo, afinal, que ela se sentisse responsável por uma escolha que não foi sua. Foi dele. E as razões pouco importavam. As que ele inventou, não convenciam mais. As verdadeiras não se mostravam. E ele não ia voltar. Os motivos da partida não tinham importância, sem a possibilidade da volta.
As lembranças boas estavam cada vez mais distantes, mas sem perder a nitidez. Lembrava com uma riqueza de detalhes absurda, mas ao mesmo tempo tinha a perfeita noção do afastamento daqueles acontecimentos em sua linha do tempo. Ao invés de curar, o tempo maltratava: quanto mais passava, mais a distanciava de quando foi feliz e sabia.
Até que um dia, no meio do seu breu, uma voz pareceu dizer, como resposta às suas orações-desacato:
- Acorda. Se ele não volta para você, é você quem precisa voltar para si.
E então, acendeu-se um ponto de luz. Pequeno. Mas já era algo de encorajador, no meio da escuridão.


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