A gente e o outro

@jogueiareguafora

A gente às vezes quer só o óbvio. Aquele que de tão óbvio, o outro nem vê. Aquele que de tão na cara e perto dos olhos, a vista embaça. A gente quer fazer ao outro a falta que do outro a gente sente. A gente quer as obviedades que todo mundo quer. Mas a gente cala todas elas, porque explaná-las soa como cobrança, ou pior, como prisão. E a gente não quer prender o outro, porque o que todo preso quer é fugir. E a gente não quer que o outro se sinta assim. A gente só quer que ele fique, nem que seja por distração ou descuido. Aí a gente finge que não sente o que sente, para poder viver aquilo que alimenta o sentir. Alimentado, o sentir cresce enquanto a gente o comprime num quartinho escuro, para que o outro não perceba o real tamanho que o sentir da gente tem. A gente finge que pouco ou nada sente, só para não ter que deixar de sentir. A gente se perde nessa trama que inventa. Se perde e silencia. E calado, se perde ainda mais.
A gente às vezes quer só o óbvio. Aquele que de tão óbvio, o outro nem vê. A gente quer a presença. Mas para evitar a ausência a todo custo, a gente finge que se contenta com qualquer mínimo sinal de fumaça. E como com todos os outros fingimentos, a gente segue fingindo até a gente mesmo acreditar. A gente finge que mensagem de bom dia é suficiente, mesmo quando o que se quer desesperadamente é o toque. A gente finge não notar quando proporcionar que o toque aconteça não é prioridade para o outro. A gente finge que tudo bem se encontrar uma vez na semana, a cada quinze dias, até que vira um mês. A culpa é do cotidiano corrido dos recém-chegados à vida adulta. E a gente, recém-chegado no amor, como fica?  Fica do lado de dentro, logo depois do portão escancarado, sem explorar os outros cômodos da casa, com medo do outro não entrar também. Enquanto isso vem o outro, com um passo todo manso, atravessando a rua. Até que chega na entrada e para, com um pé no terraço e o outro na calçada. Não dá para entender o outro. Mas será que o outro entende a gente?
A gente às vezes quer só o óbvio. Aquele que de tão óbvio, o outro nem vê. Mas há que se dar a mão à palmatória, porque tem casos em que o outro só não vê porque a gente não permite. A gente joga as obviedades nas entrelinhas e as deixa a mercê do subentendimento. Quantos silêncios talvez o outro também oferte, porque não enxerga o nosso sinal verde? A gente às vezes reclama que o outro não se comunica, mas esquece que os nossos silêncios também são ruídos de comunicação. A gente esbraveja que não dá para adivinhar o que tem na cabeça do outro, e esquece que o outro também não tem bola de cristal.
A gente às vezes quer só o óbvio. Aquele de tão óbvio, a gente cala. Mas não devia. É só na clareza das cartas na mesa que se acende a claridade do amor.

Comentários

Postagens mais visitadas