Fez do meu coração a sua moradia

Lettering: @jogueiareguafora
Bateu à minha porta tão delicadamente, que quase não ouvi. Quase. Mas tendo ouvido, abri e convidei-a para entrar. Mal sabia o que aquela visita estava para me causar. Olhando-a atentamente, àquele instante, quem poderia dizer que aquela senhorinha distinta seria capaz de tanto estrago? Me parecia somente uma figura simpática a oferecer um punhado de companhia. Tinha um certo ar melancólico, é verdade, mas pensei que isso era coisa que todas as gentes de idade têm. Não faria mal receber uma visita simpática para passar o tempo, que estava um pouco estranho para mim.
A princípio, ela era mesmo um doce. Para começo de conversa, me ofereceu chá e biscoitos de chocolate. Em minha própria casa. Sentou-me ao meu sofá, arrodeou-me das almofadas mais macias e certificou-se cuidadosamente de que eu estava confortável. Como se fosse ela a anfitriã, e eu a visita, mesmo sendo de fato o contrário. Uma velhinha hospitaleira, com mania de querer ver os outros bem. Foi o que pensei. 
- Você tem de estar descansada, querida. Para o tempo que vamos passar juntas. Precisamos conversar. - disse a velha, perdendo um pouco do tom amigável na última frase.
- Precisamos? Mas a senhora nem me conhece. - Retruquei
E foi então que ela ocupou o lugar ao meu lado no sofá, segurou minhas mãos, olhou bem fundo nos meus olhos e, pela primeira vez, me fez chorar. Me fez chorar copiosamente, soluçando como uma criança, sem dizer sequer uma única palavra. Bastou que me olhasse nos olhos para que eu desaguasse inteira. Lancei-me nos braços da velha e chorei por um tempo que não sei precisar. Sei que acabei caindo no sono e quando acordei, foi com barulho de vozes agudas e irritantes. 
Que velha folgada! Trouxe as netas para a minha casa também. As duas meninas não tinham filtro algum entre mente e boca. Simplesmente falavam. A mais nova era mais dócil. A mais velha tinha o nariz em pé e fazia pouco caso de mim. A caçula me olhava atentamente, como se eu fosse um bicho estranho. Me analisava constantemente e tecia comentários que soavam inocentes, mas me feriam. Sempre dizia alguma coisa que era complementada pela irmã mais velha. Dessa forma, se intercalavam em me maltratar e encher minha cabeça de caraminholas contra mim mesma, com muita naturalidade. Ao fim do dia eu estava exausta e com vários predicados ruins meus, rodando em minha mente. Ao me perceber no ápice de meu cansaço, por tentar - em vão - proteger das garotas a minha autoestima surrada, a velhinha despachou-as e mandou-as dormir. Ainda em minha casa. Foi quando percebi que minhas visitas inoportunas viraram hóspedes. 
E permaneceram. A passagem do tempo é diferenciada quando se está em companhia dessa família. Todos os dias eram iguais. As meninas me atormentavam o dia inteiro, enquanto eu tentava silenciá-las para fazer minhas coisas. Quando chegava a noite, a avó as mandava dormir. Mas suas vozes seguiam ecoando em minha mente. Então eu chorava nos braços da velhinha até adormecer. Eu gostava da companhia da velha, em alguns momentos. Porque ela parecia me consolar. Só que de nada adiantava. Quanto mais ela me abraçava carinhosamente, mais triste eu ficava. Pudera. Que outro resultado teria o consolo da tristeza em pessoa?
Um dia, dei um basta. Cansei. Cansei de ficar triste. Cansei de me deixar maltratar. As visitas ficavam porque tinham sob meu domínio casa, comida e proteção. Pois bem. Parei de alimentar minhas paranoias e minha tristeza. Que morram de fome! Sob o meu teto não tem mais espaço e nem comida. Hoje não tem jantar. Em resposta à minha descortesia - que alívio! - foram embora. Agora vou arrumar tudo. Quem sabe a alegria não queira vir passar as férias?

Comentários

Postagens mais visitadas