O abismo que é pensar e sentir

@jogueiareguafora

Eu não te amo. Nem amei. Não deu tempo, já que amor é construção e processo. Mas me apaixonei por você.
Não foi difícil. Você me apareceu num momento quase inédito de tranquilidade comigo mesma. Eu não estava apaixonada, eu não queria ninguém específico e, por esse motivo, não estava usando meus milhares de cadeados. Havia passado por reforma recentemente e derrubado camadas desnecessárias de muros. Baixei a guarda. A porta estava só escorada e sem esforço nenhum, você entrou. Não houve resistência. Você chegou, sentou-se à minha mesa e começou a falar da vida. E nossas vidas se pareciam num tanto, que você dizia que nossas almas se comunicavam. Eu fui acreditando. E me encantando a cada identificação. Em um dia - um único e mísero dia! - eu já estava rindo meio bobo com o canto da boca. Mea culpa. Desilusão anunciada. Continuar era praticamente assinar um termo de responsabilidade, reconhecendo a certeza de que me apaixonaria e isso lá era um problema que eu teria que me virar sozinha para resolver. Ignorei as letras miúdas e assinei. O que poderia dar errado?
Mas você também era um tanto complicado. Os obstáculos nunca acabavam. Isso mexia com a minha insegurança e me fez desistir de você algumas vezes. Só que você não soltava a sua ponta do cordão. Um dia deixamos de puxar cada um para um lado e nos encontramos no meio da corda. A gincana continuou entre um encontro e outro, mas eu relevava porque para mim, o prêmio valia a pena. Deitar no seu peito valia o cansaço de todas as provas. E eu teria continuado relevando, se você não tivesse sumido.
Como eu sempre dizia que temia - e agora acho que talvez fosse mais previsão do que temor -, um belo dia você sumiu. Gradativa e repentinamente, sumiu. Rompeu o laço. Parou com as justificativas, com as palavras em geral e por fim... Parou de me ver. Assim mesmo, em poucos dias, que me pareceram muitos, porque cada um deles era um passo atrás, em câmera lenta. Você sumiu de mim, mas não o suficiente. Os lugares que frequento, que não são muitos, estão cheios de nós. Da frente do meu prédio ao bar da esquina. E quando penso na gente, sinto frio. Frio mesmo, não é força de expressão. Não importa o quanto seja sempre quente na nossa cidade. Me achei idiota por me entristecer assim, até descobrir que a rejeição ativa a mesma área do cérebro de quando sentimos dor. O teu silêncio, literalmente, me doeu.
Mas há também a gratidão, mesmo diante da brevidade. Mesmo diante da frustração de não ter podido ir adiante. Eu teria ido, no entanto, não dava para ser sozinha. Tinha que ter você ao lado e você foi embora. Tudo bem, de verdade. É um direito legítimo seu, que eu entendo e sou a primeira a defender com unhas e dentes, até o fim. Mesmo que me doa. E por isso continuo te desejando uma luz enorme. Do tamanho da que eu queria que tivéssemos acendido juntos, e até maior. Porque é isso que desejo a mim também. E paz. E sorrisos. E que eu me encontre, e você se encontre e tudo vire história serena para lembrar e sorrir, sem sentir mais frio nenhum.
Eu me apaixonei por você e só não te amei porque você não deixou. Mas está tudo bem.

O ponto final foi escrito com água: no fim da carta caiu uma gota do olho dela. A gota queria dizer muitas coisas mas, principalmente, frustração pelo amor que quis e não pôde sentir. Paixão é pedido constante de amor. Como filho único serelepe, que pede aos pais o tempo inteiro um irmãozinho, para ter com quem brincar.
- Pronto. Tudo está dito. - disse em voz alta, dobrando o papel e pondo num envelope. Assim mesmo, à moda antiga. Porque a alma dela era idosa.

♫ Los Hermanos - Sentimental

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